segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Ep. 2 - Um plano infalível

 Não demorou muito e precisei deixar a casa dos meus pais. Não sabia para onde ir ou a quem recorrer. Certo era que voltar a morar com eles não seria possível, uma vez que meu "eu do passado" já ocupava aquele espaço físico. Desci as escadas e o relógio já marcava 8:13. Em 4 de setembro, Brasília exibia sua conhecida beleza depois de um longo período de seca. O calor era forte já no início da manhã e o ar estava carregado com fumaça de queimadas. Por outro lado, ipês floridos alegravam o dia. Mas naquele momento, minha única preocupação era em como me segurar por três anos até o fim da missão.


Bloco A da 409 Norte

Caminhei em direção à banca de revistas. De relance, avistei alguns conhecidos que, em 2025, já não mais estavam entre nós. Evitei o contato. Por outro lado, ao passar pelos pilotis do bloco A, um jovem apressado me deu um esbarrão. Negro, de estatura mediana, sorriso marcante e uma mecha branca no cabelo. É claro que o reconheci de imediato. Edgar, vulgo Edgambá ou Neguinho, estava deveras atrasado para sua aula. O diálogo foi rápido:


- Edgar?, perguntei.


Ele não me olhou e disse apenas:


- 'Tô' atrasado.

Edgar e eu em 2020


Edgar sempre foi um grande amigo. Ele é alguns anos mais novo que eu. Quanto éramos crianças, a gente acabava aprontando algumas peripécias juntos. Sempre tínhamos um plano infalível para tudo, seja para ganhar em alguma brincadeira ou apenas para tomar alguns bonecos do Comandos em Ação de outras crianças. Coisas da infância. O fato de sermos tão amigos durante toda vida me fez ter uma ideia. “Oras, vou ficar aqui e esperar Edgar voltar. Ele saberá como me ajudar”, pensei.


Fiquei ali sentado em um dos bancos da quadra. Passei a manhã toda relembrando os planos para que a missão alcançasse sucesso. Aproveitei aquelas horas para lembrar do meu futuro. Deixei Zizou e Amélie aos cuidados de minha namorada. Ela, que apesar de ser contra minha viagem no tempo, me apoiou de imediato devido à causa. Com todo carinho e atenção, recordei-me, ela me disse quando fui designado para a empreitada:


- Se não tivermos por quem ou pelo que lutar, a vida nunca valerá a pena.


Essas palavras não saem da minha cabeça. A missão precisa ser cumprida, mesmo depois de um equívoco meu que a tenha atrasado por três anos.


Já passava das 12h30 quando Edgar retornou. O chamei e, agora, ele parou para conversar comigo. Eu tentei explicar rapidamente quem eu era, mas ele resistia à ideia. Me questionava se eu não era um estelionatário ou um charlatão querendo sua atenção ou um prato de comida. Até que tive uma ideia que mudaria o rumo da prosa. Lembrei de um episódio que vivemos na infância. Episódio esse que confirmou meu apelido de Ninja.


Acho que deveríamos ter entre 12 e 13 anos. Brincávamos no estacionamento entre os blocos D e F. Eu gostava do Jiraiya e, naquele momento, queria ser um ninja. Daí, comecei a espalhar que eu era ninja. Tudo que a gente ia fazer, eu falava que “o ninja tá aqui”. Edgar foi se "emputecendo" com aquilo e em um desses momentos ele apelou. Pegou sua sandália rider e em um movimento rápido a atirou contra meu rosto. A distância entre nós dois não chegava a um metro e meio e mesmo assim consegui me esquivar daquele ataque devido ao meu reflexo de ninja. Outros amigos presenciaram o fato e, assim, meu apelido de Neco Ninja se consolidou.


A partir daí, as coisas mudaram. Edgar, que sempre tinha um plano infalível para tudo, me chamou para subir e almoçar. Só que ele não poderia contar aos pais e irmãos quem eu era. Então, sugeriu que eu mudasse o nome e me tornasse o “instrutor de jiu-jitsu” dele. Ele queria me chamar de Sebastião, mas eu não gostei, apesar de meu avô ser Sebastião. O problema desse nome são suas variações, além, é claro, de ser nome de gente com mais de 70 anos. Entre essas variações, me incomodam Bastião, Tião e Sebá. Edgar concordou e, então, decidimos que eu me chamaria Luke, como o jedi.


Natal de 2019. Zezinho e eu

Subimos e eu já estava com bastante fome. O Zezinho, pai do Edgar, abriu a porta. Logo, reclamou:


- Pô, Edgar, você traz amigos pra cá sem avisar?


Edgar explicou quem eu era e que eu precisaria ficar alguns dias com ele. O Zezinho não se opôs. Homem de grande caráter e coração, logo pediu para eu me sentar e começar a almoçar. Estava tudo caminhando bem, até que em meio a uma conversa descontraída, eu solto uma informação perigosa:


- Então, Faísca, obrigado por tudo isso que está fazendo por mim. Sou muito grato.


Ele parou de comer, olhou para mim e respondeu:


- Você me chamou de que?


Eu não sabia onde colocar a cara. Zezinho tinha um irmão e os dois foram apelidados de Faísca e Fumaça quando jovens. Apelido esse que ele nunca gostou e que pouquíssimas pessoas tinham conhecimento. O clima pesou e ele insistiu no questionamento. Eu me apressei para engolir e pedi licença. Ao sair, pensei comigo: “Pô, tu és burro ou o que? O cara te dá comida e abrigo e você caga tudo”. De volta à estava zero. Na casa do Faísca, ops, Zezinho, já não posso ficar.


Continua...


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Ep. 1 - Um encontro com o passado

O ano é 2025. O país se transformou em um caos absoluto depois que o resultado das eleições não contemplou um dos candidatos. Após o encerramento da votação, pequenos grupos armados insurgiram em diversas partes. Ao que tudo indica, a ação foi orquestrada e planejada com muita cautela anteriormente. Com todas as fragilidades do sistema, o braço forte do Estado ficou ao lado do perdedor das urnas e, com isso, fomos obrigados a resistir. E foi desta maneira que surgiu a Resistência.


Em meio ao caos, essa Resistência reuniu parte da classe trabalhadora – que também saiu dividida do processo – e profissionais liberais de diversos segmentos. Servidores públicos, jornalistas, advogados, escritores, filósofos, cientistas... Todos se viram obrigados a pegar em armas, ao mesmo tempo em que dedicaram seus esforços para combater o que deveria ser combatido. Em resumo, estamos há pouco mais de dois anos nas trincheiras, enfrentado aquele que deveria nos proteger. Mas algo vai mudar... E tudo passa por tecnologia.

Meteoro corta o céu de Goiás em 2022

Em abril de 2022, um meteoro cruzou o céu de Goiás, provocando um clarão e surpreendendo moradores. O que a imprensa não noticiou à época é que parte da rocha interestelar tocou o chão e que o governo a capturou. Esse pedaço do Cosmo trouxe consigo uma substância desconhecida. Cientistas que até então trabalhavam para o governo tiveram acesso ao material, que tinha um aspecto gelatinoso de cor azul petróleo predominante e algumas falhas em branco e preto. Um desses cientistas, que se alinhou à Resistência após ser perseguido junto com sua família, roubou parte da amostra.


Dos estudos com o “alienígena”, conseguiram encontrar uma maneira de quebrar a barreira do espaço/tempo, possibilitando, assim, um teletransporte na linha temporal. Nossos cientistas, então, construíram uma máquina movida pela substância, que de tão poderosa era capaz de colocá-la em funcionamento com apenas uma gotícula. Mas para que tudo ocorresse, não se podia viajar nela apenas uma pessoa. Eram necessárias duas. E para complicar ainda mais o processo, as duas precisavam ter pensamentos e desejos antagônicos ao ponto de não haver qualquer possibilidade de concordância. Era o equilíbrio universal fazendo sua exigência para que o homem pudesse romper essa última barreira do conhecimento.


Sim, a viagem ao tempo se tornou possível, mas com os perigos e as particularidades que uma nova tecnologia oferece.


Como tínhamos alguns prisioneiros sob nossa custódia, poderíamos colocar um plano ousado em prática: evitar que o conservadorismo chegasse ao poder. Com conhecimento histórico e in loco (cresci em Brasília na década de 1990), fui designado para cumprir a missão. Quando nos preparávamos para o início da operação, nossa base foi atacada. Tiros, bombas, lança-chamas... era um caos generalizado. Foi nesse momento que me empurraram para dentro da máquina junto com o adversário. Uma pequena quantidade da matéria alienígena foi rebocada na porta. Nesse momento, tive que apertar rapidamente o dia, o mês e o ano desejado: 04-09-1999. A porta se fecha e na correria e desespero, erro a digitação e clico 04-09-1996.


Barulhos, luzes apagando e acendendo, além de uma turbulência são percebidos. Só quando tudo se acalma, percebo o equívoco na data selecionada. A porta se abre e me deparo com a portaria do Bloco C da 209 Norte, quadra vizinha a que eu morava na década de 1990, a 409 Norte. Meu companheiro de viagem corre assim que a porta se abre e eu, ainda confuso, tento me recompor do que acabara de ocorrer.


Família na década de 1990

Meu primeiro pensamento foi: “errei. Agora, preciso ficar aqui durante três anos para cumprir a missão. Espero que o tempo não me faça esquecer o propósito disso tudo”. Saí devagar da portaria e vi a quadra de esportes em que jogávamos time contra com os amigos da 209. Muitas lembranças saltaram naquele momento.


Era cedo, a madrugada se rompia, dando início a um novo dia. Curioso, caminhei pela calçada entre as árvores de jamelão e manga. Passei pela banca de revistas e cheguei ao estacionamento do prédio em que meus pais moravam. O Bloco F continuava feio, precisando de uma grande reforma, o que ocorreria décadas depois daquele dia. Parei entre as vagas para os carros e olhei para a janela do apartamento 107. Nele, moravam nossos vizinhos que passaram a compor nossa família. Ouvi a voz da Mercedes conversando com o Resende. A luz da cozinha ainda estava acesa. No apartamento de cima, o 207, moravam meus pais.

Eu e meu sobrinho, em 1997

Ainda no estacionamento, procurei o carro do papai – uma Elba em cor azul claro perolado. A encontrei ao lado de outra Elba, uma de cor verde escuro (de propriedade do Resende). Estavam ali, como sempre estiveram durante anos. Me perguntei se poderia subir para ver meus pais. Como, aos 45 anos, eles me reconheceriam? Além disso, como explicar o fato de ser filho deles se na verdade eu estava dentro da casa deles com 16 anos? A minha situação não era boa. Mas, por algum motivo, queria vê-los. Meu pai havia falecido em 2022, quando eu já tinha 42 anos.


Tracei um plano. Comprei flores no comércio da 209 e, assim, simulei uma entrega. Toquei o interfone do apartamento 207. Uma voz muito conhecida atendeu:


- Pronto!, disse a voz da minha mãe.

- Entrega para dona Lázara, respondi.

- Sobe!, ordenou ela.


Eram 32 degraus ao todo divididos em quatro escadas. A cada passo, um pensamento diferente passava pela minha cabeça. Subi devagar e ajeitando o capuz do meu casaco. A porta estava entreaberta. Notei, no canto entre a porta e a parede do corredor, o piso antigo em taco. Eis que a porta se abre:


- Meu filho, o que fazes aqui?, questionou minha mãe.

Nessa hora, fiquei assustado, pois não passava pela minha cabeça que ela me reconheceria.

- Oi, mãe. Vim fazer uma visita. Trouxe flores, afirmei.


Ela me abraçou e me puxou para dentro. Em um dos sofás, meu pai sentado via TV. No outro, meu irmão estava deitado. Minha irmã não estava em casa naquele dia.


Era uma situação estranha, mas curiosa. Eu estava na minha casa, mas não me sentia em casa e estava louco de curiosidade para me ver aos 16 anos. Ao que tudo indica, eu ainda estava dormindo no mesmo quarto que dividia espaço com meu irmão. Mas sem pestanejar, disse que tinha “coisas” novas para eles. Retirei da minha bolsa uma caixa de som (estilo JBL) e comecei a explicar o funcionamento via rede wi-fi. Em 1996, nem computador nós tínhamos em casa. Internet era coisa que havíamos ouvido falar.


- Mas como isso é possível?, questionou meu pai.


Eu não sabia como explicar. Tentava dizer que era uma tecnologia nova, mas que ainda não havia se popularizado. Ao mesmo tempo, queria correr no quarto para me ver. Nas duas tentativas de ida, meu irmão me enxia de novas perguntas e eu não avançava em direção ao corredor que dava acesso ao nosso quarto. Sem muito sucesso, acabei por perceber que estava fugindo ao foco da missão. Por outro lado, pensava como eu ficaria três anos naquele mundo até a data desejada para o cumprimento dessa missão? Bem, com certeza muita coisa há de ocorrer nesse período. Por ora, caberia a mim me reinventar nessa sociedade “ultrapassada” que tanto me deu e me fez ser o que eu sou. E essas aventuras até o grande dia ainda serão contadas. Mas não hoje.



Continua...


Ep. 2 - Um plano infalível

 Não demorou muito e precisei deixar a casa dos meus pais. Não sabia para onde ir ou a quem recorrer. Certo era que voltar a morar com eles ...